Não há ninguém que não saiba assinar...

Porto, Abril 2005

Está com um processo em tribunal.
Descobriu passado 4 anos de ter cometido o crime de que não se lembra, da facada que deu numa pessoa possivelmente por embriaguez (possivelmente porque na realidade nem se lembra do que fez...). Descobriu simplesmente porque precisou de tirar o BI.
Descobriu simplesmente porque estava em situação de contumácia, ou seja, proibido de tirar qualquer documento de identificação (BI, cartão de contribuinte...).
Não sabe ler nem escrever. É alentejano e sempre trabalhou no campo com os pais. Vivia num monte e trabalhava para o dono, para o lavrador. Nunca houve tempo a perder, nunca houve dinheiro a não ganhar para ir à escola.
Fez agora 57 anos. Não sabe ler nem escrever e não tem o BI para o confirmar.
Vai ao tribunal para fazer o termo de identidade e residência. À exortação "assine qui sff" tem de responder "não sei assinar". À exortação "mostre-me o seu BI pff" tem de responder "não tenho BI". E causa o caos. A ida da funcionária ao computador, o sobrolho carregado de quem não sabe o que fazer, a pergunta à colega do lado. Passado uns minutos regressa e diz-me que eu tenho de rubricar como testemunha de que o senhor não sabe assinar.
Eu assino e pergunto o óbvio: E se em vez de vir acompanhado tivesse vindo sozinho?
A resposta, frente a frente com o senhor que não sabe assinar, é inacreditavelmente infeliz: "Habitualmente não há ninguém que não saiba assinar...".
E assim nos tornamos insensíveis...